terça-feira, 26 de abril de 2011

A DOR.

Quando ela vem de seu conventículo,
de suas trempes, de seus cacos.
Quando ela vem com seu cheiro de bolor,
com sua cabeleira desgrenhada, unhas negras,
com seu pelo hirsuto, sua cara suja.
Nada a anuncia. Nem vento, nem carta
ou seu cheiro acre, seus emissários mudos.
Ela é silenciosa como um peixe.
Chega sorrateira, macia.
Vai entrando nosso mundo adentro,
se instalando, botando a mão em tudo.
Quando ela chega, nada nos basta,
Amigo, parente,doce, afago, sexo.
Nada.
Ela é suficiente, ela nos basta.
Ela nos quer inteiros.
Mente, corpo, alma, desejo.
Uma mulher possessiva, etérea, mas vívida.
Palpável, com sua sudorese do Sheol
Ela não admite distrações.
Toma-nos pela mão
e nos conduz ao seu limbo palpitante.
E ali somos aviltados em tudo.
Não há defesa, não há saída.
Quando ela se vai,
deixa seu veneno diáfano em nós.
Vez por outra, lateja dentro.
Lembra-nos de sua posse
E calamos ante seu domínio.
Sua égide transcendental,
Seu reino universal.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Minhas posses.

O que eu tenho?
O que é meu de fato?
Que posses tenho em minhas mãos?
Nadas.
Tenho nadas.
Sou um sem religião,
sem time de futebol,
ou qualquer outra porcaria.
Meu endereço é temporário.
Sou possuidor de nadas.
De nada posso dizer:
È meu!
Meu fígado, meus rins,
meu desejo não é meu!
Seguem todos a revelia de meus mandos.
Meus são o pesar, a dúvida
e o medo de altura...
meu carro, minha casa
são mais ou menos meus.
De tudo que eu tenho
Efêmeros são
e nada posso levar.
Serei depositado numa caixa que não fiz,
numa cova que não cavei.
Nada tenho
e nada do que fiz é meu.
Não posso derramar minha vida
nem tomá-la de volta.
Não posso fazê-la honrada,
feliz, triste ou grande.
Porque nada tenho.
E tudo o que tenho não é meu.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

O brinquedo

No tempo em que a China
era debaixo do mundo,
quando o Paraguay não era
uma banquinha de lona na esquina.
No tempo que meu ofício era brincar,
nesse tempo, ganhei um brinquedo sem graça.
Ele era de um plástico feio, amarelado.
Era uma metralhadora.
Joguei pelo alambrado da minha casa,
aquela coisa sem graça, inútil.
Não dava tiros, nem tinha mira.
Queria uma arma como aquela do cinema,
que cuspia fogo, e fazia aquele estalido bonito.
Depois de alguns dias, vi alguns meninos
os pobres, aqueles meninos perigosos,
aqueles com quem minha mãe não deixava brincar.
Eles estavam com a minha metralhadora amarela,
e ela fazia sons incríveis.
Soltava rajadas e derrubava os bandidos.
De vez em quando o mocinho também morria.
Mas era uma morte sem morte.
Eles riam da morte, brincavam com ela.
Eu, do lado de cá, sentia uma dor aguda,
uma saudade inexplicável
daquele brinquedo inútil,
a minha metralhadora amarela.
Ela reluzia nas mãos dos meninos tortos.
Eu não imagina tanta alegria, tanta graça
produzida por aquela metralhadora amarela.
Aquele plástico informe, aquela forma grosseira,
Era agora tão sedutora, boa de se tocar.
Podia, do lado seguro onde estava,
sentir o cheiro de plástico.
(na verdade, a memória dele).
Mas a vida de metralhadora,
não é melhor que a de menino sem brinquedo.
Ela também sofria o desprezo, a solidão.
mesmo no meio de tanta festa, tanta gente.
Descobri isso muito tempo depois,
quando eu mesmo pude ser
a metralhadora amarela de alguens...

terça-feira, 12 de abril de 2011

A metralhadora amarela

Metralhadora amarela.
obtuso brinquedo esquecido.
Ela não é como o sisal,
ou como um vôo de borboleta.
Ela não é como um cacto
que permanece solitário,
com seus braços estendidos
e os dentes à mostra.
Mas quando desprezada,
Passou às mãos de outro menino,
Que usava sua inutilidade,
para matar outros amigos,
Aos quais eu nunca ousara.
Nem os conhecia de fato.
De dentro do meu cercado,
onde minha mãe me guardava
Via minha metralhadora.
Reluzente agora, seu amarelo canário.
Minha arma repudiada.
Como era doce o som do meu dedo
sobre seu gatilho de plástico.
Como era terno ver meu irmão
caído sob sua saraivada enquanto eu gritava.
Ratatatata...Ratatatata... Ratatatata...
Agora por detrás do alambrado,
vejo meu irmão de fato
com a alma esticada, erguida
sua bandeira da paz.
Ele sempre foi mais corajoso que eu.
Sempre aceitava ser o bandido.
Mas sucumbiu aos tiros que eu lhe dava.
Meu irmão que me amava,
Minha alma estanque, seca...
Metralhadora de nada

A cerca

De onde estou, posso ver o horizonte.
Mesmo quando abaixo a cabeça pra comer,
Ainda consigo ver depois da cerca, a serra...
Bandos de maritacas voam baixo grasnando
passam sobre meu dorso, enquanto pasto.
Descendo a colina tem um riacho,
águas claras cheias de lambaris miúdos.
A água rasa bate no meio da canela.
Quando atravesso, a areia branca escorre,
por entre os meus cascos.
Sinto um preenchimento inexplicável.
A solidão aqui é boa, só sinto falta de uma fêmea.
Mas a cerca na outra margem me detém,
ela está ali, quase invisível, mas está.
Posso com um pouco de esforço, rompe-la.
Mas o medo da novidade me impede.
Gosto de estar seguro, do lado de cá.
Meu dono, vez em quando aparece,
me atrela à carroça, e puxo coisas dele.
Não sei pra que servem, só puxo.
Depois ele me solta na amplidão cercada.
A cerca é uma espécie de referencia de mundo pra mim.
Sem ela, acho que ficaria muito ansioso.
Admiro os outros bichos que não vivem cercados.
Mas penso que não é pra todos.
Sou apenas um animal de carga, tenho dono.
Me sinto importante e até protegido.
A liberdade ainda me assusta muito.
Acho que só quero pastar sossegado,
beber água no riacho, correr nas campinas.
Nessa vida de asno a única coisa ruim,
acho que é dormir em pé...
De resto, gosto dessa pasmaceira...
Acho que vou dar uma rolada na terra agora...

terça-feira, 5 de abril de 2011

Ideias...

As ideias sumiram
acho que mudaram de casa,
de bairro,
talvez até de cidade.
Da minha cadeira de balanço,
na ampla varanda do meu ócio,
não as vejo mais rondando por ai.
Suas filhas menores
aquelas idéias infantis (as melhores)
não fazem mais algazarra
ficou um silêncio só.
-Sabe como é um lugar sem crianças!
Tudo fica sem graça.
Vez em quando eu ouço ate um burburinho
quando olho já não vejo ninguém.
Só ouço o barulho do vento de outono
sobre algumas folhas mortas...
Ouço a grama crescendo,
vejo insetos pululando sob o mato rasteiro.
A casa onde as ideias moravam
está um abandono só.
A tinta descascando das velhas paredes de madeira,
uma teia recentemente tecida aguarda sua presa...
Deve começar a esfriar logo,
mas de resto só o silêncio,
um profundo e lúgubre silêncio
na casa ao lado
onde moravam as quase invisíveis
ideias.

O santo e o profano

Profanas são as coisas, todas
os utensílios
as sagradas todas, coisas
a vaca, o presépio, o propósito
a casa, o tatame, o altar
a faca, a bacia, o sangue
onde se lavar, o mangue.
é santo o lagar
o barro, o trigo, a água
o frio enxágüe, o quarar.
O pranto o gozo, o tragar
a posse, o desejo, o querer,
tudo é santo
pra se profanar.
O pão que como, o vinho
o examinar, o posto
que debalde, quero deixar.
o gesto, o pulso, o olhar
A polução, a cópula.
A ira que quero odiar.
É santo, é profano o falar
o fazer, o cozer, o pensar
toda obra, toda mácula, o pesar
quem me vê, quem me quer profanar
tudo em todos, e tanto tem
que o verbo julgar.