domingo, 28 de abril de 2013

Receita de filhós.

Pegue uma Tia Chiquinha, ou Carmelina ou Maria,
sintonize em Índia, sua cantiga de cozinha.
Numa bacia de alumínio batido, rebatido,
amassado, ariado e bem polido,
coloque uma porção de polvilho, de ouvido.
(Deixe os olhos dos meninos pendurados na porta).
Em seguida, acrescente quatro ovos de carijó,
(se tiver azul é sinal de boa ventura)
mexa bem até ficar com cheiro de chuva.
Numa panelinha da dona Bela,
(aquela com cabo feito pelo vô Vicente)
acrescente água, açúcar, sal e um pouco de óleo,
embale como quem dorme criança em rede,
deixe ferver e escute dona Bela inventar
a historia do menino Roque, que não se podia chamar.
Acrescente na massa, e mexa até parecer alfenim.
Enquanto enrola os bolinhos, escute a doçura da Tia Chiquinha,
com sua voz afinada em terceiras, sua harmonia.
Frite os bolinhos em óleo quente e peça um café à Belinha,
quando ele fumega, chama alegrias, chamas filhos e netos
Cujos primogênitos são Antonio e Chiquinha.
Coma de olhos fechados, e gema um pouquinho,
Sinta toda a saudade, que debalde escorre na pia.

Crise existencial.

Com o corpo atolado na rede
e os olhos pendurados nas estrelas,
um cheiro de mato me anela.
Numa poça de cantorias e cortejos,
um sapo goteja seu canto incerto.
Ora diz, ora pergunta: quem vai? Évem?
É noite? É dia? É rã ou é gia?
Sob o estalido de galhos se rompendo
e o tom da grama crescendo...
Pergunto ao éter, (ao que se oculta na voz da saparia):
De onde vim? Para onde vou?
O sapo entoa seu gemido Bachiano:
- De Pedro Gomes! Pedro Gomes!
A gia sussura sua vozinha melíflua:
-Pra Coxim! Pra coxim!
(O que, aliás, é o equivalente a capitania).
Agora sei a rota e o rotundo
Sei o raso e o profundo:
Sou um sujeito de quimeras
pessoa de capoeiras e cacimbas.
Gerado nas entranhas do nonada,
do que não é, de gentes vãs,
de coisas sem valia, sou cria
dessa cablocracia, dessa parva, desta saparia.
Sou filho do marracabelo
e meu destino é a morraria.

sábado, 27 de abril de 2013

Sabedoria da Itaúba.

Me atrai o tosco, o fosco,
Sou dado a maiados, aos tordilhos.
Me visto do roto, do lampinado.
Tenho ânsias de brenhas, de picadas na saroba.
Acredito na verdade da itaúba velha,
quando senhora de cãs, avilta seu dorso de sóis e chuvas,
na tapera cheia de historias pra orelhas de paus.
Desconfio da pedra lixada, da cara polida,
esculpida em Carrara, lisa, domada.
A pedra não se doma, já dizia o João.
Mas quanto se pode aprender do desbotado,
da nódoa, da mancha que o caju da de lembrança.
Com o melado da fala acaboclada adoço minha prosa
e vou afiando, afiando a pena que cá dentro rima.
Coleciono ditos, causos e nós de peroba.
Tudo isso tem serventia na hora que dentro range.
É panaceia d’alma, é donde se apoia o coxo.
Quanta serventia tem a fresta, quando a réstia
vem trazendo a manhã que nunca desiste
e minúsculos grãos de poeira dançam sua sempre dança.
Quando o barulhinho dá água vem em seu andar riachoso
faz lembrar do café, do mate, do amargo de toda erva cheirosa,
pergunto a uma perereca amarela de tanto pensar:
-A vida das coisas, quem pode explicar? Quem entende?
A gia, o Urutau, a guanchuma, o saruê, o zaino que corre...
Eles sabem o rumo certo de toda traia do mundo.
Sabem ver no lusco-fusco, que a grama goteja solerte,
enquanto calangos põem um olho pra espiar o mundo
indagando se já deu hora de embaralhar as folhas.
Ela pisca comprido, já dando prazo pra pular,
dá uma mijada no páu e vai procurar serviço.
...
Povim besta.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Baleiro.

Evém o baleiro
évem o nêgo seu Dodô
évem trazendo sonhos e alegrias
em seu tabuleiro de cor.
Eu menino de igarapés e trieiros
amava de longe aquele nêgo
com sua calça branca em chinelos,
um de cada cor, reluzente ouro nos dentes
e guarda-chuvas azul, rosa e bordô.
pendurados em sua tábua fornida
de imbuia, cravejada de odor
vinham além disso, mistérios açucarados
aventuras de gibis e aquela antiga dor.
Hoje a conheço bem, fui me fazendo homem
deixando de lado a quimera, pra de vera
inventar um adulto, um ator.
Mas o nêgo Dodô, era tudo:
Era menino nas canturias, era homem
pra contar a grande valia, que trazia
em seu baleiro de cordéis de amor.
Era cambaio o nêgo, era um corisco
em historias de mal-assombros,
enquanto contava "uns conto"
versado em Pai da mata, Pé de garrafa
e Curupira, o nêgo em tudo era dotô.
E quanto mais fundo a alma ia,
embrenhada em matas e grotões
mais depressa derretia
o pirulito queimado que vendia
o nêgo valente, o Dodô.