quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Aguaceiro

A beleza de agosto está na bagaceira,
no crepitar do capinzal tórrido.
Na anchura de um valado seco,
no prim-prim-prim de um rego lerdoso.
...
Uma fumacinha subiu na lonjura.
É queima que inaugurou  cana!
Um estalido anunciou água dentro,
mas o fogo lambeu sereno, sem pressa.
Redemoinho mentiu chuva breve:
-Tem capiroto que dança nele!
Coisa de se pegar em peneira e engarrafar.
-Qual! É astúcia do vento barulhoso!
-Se ocê num querdita num desdenha sô;
que é bicho assombroso de outro mundo!
Lenda de caboclo besta, sismoso sempre.
...
Sei de um segredo que ninguém conhece:
Um pedrusco avermelhado que escondi no morrote.
Sua pele sempre lisa, sua solidão me põe inveja.
Sou pessoa de gravetos, de cascas e estames partidos,
tenho apreço por grilos marrons e besouros cegos.
Uma nuvenzinha se aprumou no horizonte,
mas nem chuva nem vento, só secura.
A capoeira vai se organizando mode a noite,
que évem solerte, trazendo um bafo úmido,
um restolho de esperança, um alento ao seco.
Entre mugidos e grunhidos nos baixios,
um caga-cebo assoviou auspicioso
e o coleirinha banhou-se na areia mornenta.
Tanto festejo, tanta farrura nas copas,
agosto anuncia seu cansaço, 
breve évem aguaceiro!

domingo, 25 de junho de 2017

Grotões

Não há poesia na vida
nem na morte que olha
pela porta entreaberta.
Não há poesia na libélula louca,
nem no menino que corre.
Não há poesia naquele mourão,
nem no bem-te-vi inconstante
que mercadeja a Embaúba doce.
Ela é um pangaré hesitante,
sempre mambembe, moura,
de ideias oscas como a vaca.
Carrega nua pela estradinha,
suas trempes etéreas, devaneios,
desvarios inúteis sobre paus,
penas e a serralha de flor branca.
Quem se ocupa com suas lérias
perde tempo e nada ajunta.
É ópio e fumega constante
sempre adernando, sempre tosca.
Versa ora sobre um rio ancho,
ou aquele rego d'água tiubeante,
que tirilinta um buriburi infinito.
Não constrói nenhuma valia,
mas sabe de coisas do cerrado,
do fogo que correu bicho,
da florzinha que despega voando
pelo desalinho que o vento teceu,
nas pequenas touceiras de capim,
na tarde oscilante. Somenos!
Como quando a formiga assunta o rumo,
ou quando um João-de-barro dá seu pulo-passo.
Nome de paus, de gentes, de bardas,
histórias que coisam a noite quando coisa.
Na poesia a realidade se alonga na brenha
e da lugar a nadas, a eitos vazios, a grotões.
A poesia é uma loca de antanhos.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

As vendedoras

Na avenida Calógeras,
moças ocas esperam
na porta inconsciente,
soslaio no séquito.
Esperam o freguês, o paciente,
o impeachment, o golpe transeunte.
Passam velhos, moços cansados,
passam meninos, meninas casadas.
Todos passaram...
Passou o dia, passaram os anos,
a moda passou, elas ficaram.
As moças ocas botaram brotos,
seus olhos extenuados secaram.
Mas o tempo ali não passou,
foi ficanducando, criando arestas,
deixando marcas empoeiradas,
marcas de desesperança, esperando.
O verdugo das horas marcou incessante
no descompasso de um tempo antigo,
sempre o mesmo modo, redundante.
As moças aquiesceram, sempre ocas,
repetindo o mesmo mantra
num muxoxo inaudível:
O preço, o desconto, o clima, a novela...
Bancas repletas de desejos rotos,
que o sol marcou graciosamente,
em tons de amarelo ouro, desbotando.
A conversa ensaiada, reza o mesmo:
O desgoverno, o furto, a propina...
Essas moças que regem esse mundo oco,
estão lá para fazer esquecer o desgosto,
sabendo que cada passante vai oco,
buscando o motivo de dar o próximo passo-passo,
pisadas ocas ecoam nas moças ocas
em seu mundo oco.
-Chegar freguês! É promoção!

Fastio

Viver sempre na superfície,
nos valados, no rasteiro, no grotão.
O raso é sempre seguro, não intima,
onde o mormaço oscila uma poça
e uma poeirinha besta açoita.
Sou do raso, da superfície,
rejeito profundidades e inquérito.
Quero sempre o inútil do cerrado,
a fome do lobinho, o mormaço,
o sol que finda amarelando o dia
para a noite já se inaugurando.
As demandas dos homens cansam,
sempre a mesma ladainha, o mesmo choro,
a mesma reza inútil, a mesma fome.
Tudo é solene, tudo é sagrado:
A morte, o nascimento, os laços,
a dor, a alegria, tudo é pesado...
Clérigos roçam baixo, o pasto
com sua nobreza régia, sua voz calma,
seus arreios levam seixos santos,
ossos, panos,lágrimas, lâminas etéreas.
Mas o grotão tem seu próprio lume,
sua prece sinuosa, sua volúpia,
seu burburinho aquoso, seu nume.
O carcará pinçou um pintainho
e subiu seu voo legítimo.
Uma rabeca lambeu um ingazeiro,
seco, seu dorso branqueia a casca.
O inverno no cerrado é amarelo
no capim que cresta derriçoso.
Querelas estão nas copas por pouso,
não há necessidade de ordem.
Ao fim do sol, a noite negrurou
e as manhas virão eternamente.
-Percisa não seu moço!
O que évem sempre já estava!

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Pé de serra

Naquele mundico antigo,
lá, naquele lugarojo empedernido,
onde o céu descansa na serra,
um par de asas desenhado em cartilha,
passarou uma nuvem encostada.
Piooú! Piooú! Agourou penoso em assomo.
Flap! Flap! Desenhou no ar um risco
e sujou rumo do sol pastoso.
Na estradela espichada na brenha,
pedruscos encarnados, silenciosamente
querelam um mormaço ondoso,
que sobe fumacento no meio do dia.
-Digue! Digue tu que desdigo!
-Digo não que estou com pressa!
Anum tergiversa com o branco.
(Anum branco falseia a cor)
Fogo-pagou disconcorda:
Errou! Errou!
É sempre agosto nesse lugar
guardado em gavetas de minha avó.
Estão dentro, um cheiro amarelado
de livros que se esqueceram.
Lá, os homens são pra ser lidos,
histórias de assombros medonhos.
-Mode que lobisomem é lendoso!
Desafia o Raimundo em valentia.
-Mas o homem é besta-fera!
(Ensina a didática da corrutela).
Um birim, birim de corguinho intermitente
é a música constante no quintal,
onde as manhãs são tardias
e as tardes matinais.
É a ordem, onde todo desacordo cessa,
onde o tempo desencoraja o relojoeiro.
Onde deixei minhas memórias
guardadas em gavetas abissais,
que se abrem com chaves etéreas.
Lugar inventado no im antes Mato Grosso,
no marracabelo, ao pé da serra.

domingo, 21 de maio de 2017

Cerrado

O cerrado me entardeceu cedo;
Um cheiro ocre, tão áspero, embriagou.
Telúricas almiscaradas se misturam,
tecendo-me teias imemoriais.
Sendas amarelecidas permeiam-me,
rastros, uréia, pedruscos medram dentro.
O outono finalmente desfolhou-se
e enterneceu um pequizeiro.
A escassez do cerrado ensina;
Aprendo-lhe a economia,
o alheamento, o caos ordeiro.
-Lobinho diz que tem, mas raleia!
Tamanduá assunta formiga no vento,
quero-quero mente o ninho gritando.
Agora tem um tom chumboso nas folhas,
breve agosto virá derriçar o capim.
No cerrado o medo erra caminho:
-Assombração num tem gosto na luz!
E quando a noite évem, devagarinho,
a grilaiada organiza o baile inté tarde!
Trovejou na borda da mata dentro:
-Bugio deu notícia de chuva:
Com três dias aguaceiro é certo!
-Há no cerrado toda sorte de vivente!
Uns veve em cima, outros no embaixo!
Essa lonjura sempre no horizonte,
aumenta a vista da imaginação.
O cerrado encerra tudo no homem,
Inté o palavrório vareia!

segunda-feira, 20 de março de 2017

O lucro

O lucro é bruto
é liquido, é de poucos.
O lucro é raso,
é tísico, é louco.
O lucro é volúvel
é volátil, é voluptuoso.
O lucro entontece
inebria, ensandece.
O lucro esquece,
o lucro vence, empobrece.
O lucro caça,
espreita, entenebrece.
O lucro janta, jacta,
almoça o próprio dorso.
O lucro é osso,
é carne, é sangue,
O lucro é um fosso.
O lucro seca,
exaure, extirpa, enrijece.
O lucro sega,
o lucro suga,
O lucro é doce.
O lucro é ogro,
é cego, é mudo, é mouco.
O lucro é um aleijão,
Quasímodo insone,
o lucro é uma paixão.
O lucro é um vício,
é um dote, é vão.
O lucro é um dom,
é torpe, rufião.
O lucro não é de todos,
é de tudo, é ladrão.
O lucro é um menino no escuro
esperando a ocasião.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Plástico

Eu tenho uma TV!
Minha TV é de plástico.
É de plástico minha TV de plástico.
Nela tudo é de plástico.
O jornal é de plástico,
a notícia é de plástico,
a morte é de plástico
e a vida é de plástico.
A arte é de plástico
e tem até comida de plástico.
A criança é de plástico,
a mulher é de plástico.
É de plástico o sofrimento,
o riso, o gozo, a dor,
o parto, a verdade é de plástico.
A mentira?
É plastificada, é duradoura e dourada,
é organizada, metódica,
ela é negociada ,institucionalizada.
Há uma guerra de plástico,
uma hecatombe de plástico.
Em uma sala de plástico,
há um caro tele-espectador de plástico.
Dedos de plástico, sentimento de plástico.
A beleza, o horror, o bizarro,
a feiura, o desastre é destarte,
é de plástico.
O ódio, o sexo, o parricida, o político
o incesto, a puta é de plástico.
O amor? Ah! acabou;
Acabou o plástico.