sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Colheita



Quando a tarde chuvalheia
de sombras esmas o milharal,
Chupim-do-brejo vigia osco no cepo.
senta praça e rijo, põe cuidado.
O bando arrevoa e colhe silente.
-Isto eu vi com olho meu mesmo
que não foi causo contado nem letra.
Bicho põe norma no roubo
que aprendeu em escola penosa 
e soldadeia sereno seu posto.
-Cará-cará évem! Foi, foi!
(Que é homem na língua passaral).
Alardeado o corno, revoada amarela
tinge a tarde quieta com seu dorso.


O verão morno sopra esperanças 
e a vida tange o povinho alado.
Com tantas tarefas, o tempo urge
sequioso e faminto de fazer e refazer 
a importante obra de multiplicar, 
de coser e entrelaçar fios,
de colorir, semear e significar, 
de repetir o tempo no tempo.
De preencher a vida com vida,
dando à cada dia sua urgência
que a noite évem noite sempre a mesma... 


quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Natal

 Coisou o tempo em seu regaço,

um desalinho mansoso que foi crescendo.

Dezembrava e o festivo aborrece por modo.

-Causo que desde sempre é o mesmo,

prosa igual, tardejar noite na rua

e os tiros. -Eh gente carniça.

-Por isso não tem cachorro cristão.

Eis vão à igreja mode silêncio e gente.

Deita as fuças sobre as patas, 

solene, quieta o rabo e escuta. 

-Diz o povaréu que balançar o rabo

desde im sempre foi pecado mortal na sé.

A cantoria faz alerta o penitente.

(Quando eis canta, logo enchem a pança).

Peru, galinha e todo bicho que avoa...


Cá no mato é a mesma norma sempre,

dormir cedo e madrugar o mate,

vestir a farda dantonte, assuntar o vento

 e escutar o guagajar na matinha...

-Chuvarou bem nestempo,

João-de-barro atrasou a obra.

Já tem nuvem arruaçando no longe

e o dia foi e voltou tal e qual...

Um menino em Rondônia...

 No ermo, um que vinha  

Passarinhou um vento leve.

Arara ponteou seu gras-gras 

Na copa balam-balam que era…

Ventou um pândego trôpego.

Assovio, crique-crique, estalo-talo

E a bazófia de uma disputa por posse d’arve.

(Que no desnoite cedo, quem foi, foi).

É tardenoite no eito, moradia inserta,

decomer já escasseou e escurou!

Bicho de olho tocha já espreguiçou,

Assuntou o cheiro, lambeu-beu e estirou.

Na gravanha o medo tem norma,

Assombração, pasmo e pau podre,

dão anúncio de coisa inserta, certa:

Que quem não corre não véve.

Tem prosa longes que só o zum se divurga.

Mas coruja não teme o breu

que seu olho é antena e gira-gira.

Uhu! Uhu! Feitiça ouvido de gente…

Estalido e corro pra luz 

Que a noite é trevosa e range.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Guaipeca

 -O bicho cachorro é um coiso cépto!

(Diz o Vardi quando intenta o luso).
Só divurga o vasto e o tento.
não tem parenteio nem posse,
Só o arreceio do rabo

que é seu rumo no rastreio.


Feiura dele é causo de saúde,

porque tem caldo diverso no pelo.

Serventia de cheiro e notícia,

conhece fala de carro e pisada,

e tudo que desanuveia o sentido reto.


Cão, prissiga, peste, carcumo

só presta pra comer e peidar.

Todo nome que recebe apoita,

mas é causa que o som familía

e o povo assume que é ciência.



Já nasce de casaca e coceira:

Coça como o diabo e fede...

Tem cheiro de cascuda e borno.

Mas em dia de noite assunta…

Da aviso, restunga e ressente

tudo que entorta o medo

ele enxerga no lusco e grungeia...

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Aguaral

Buriti se apegou à pedra 

com esperanças de raiz

porque dela merejava no limbo.

Oco de pau sorriu-se moco,

na trilha d’anta fiotada.

(É perciso ser reto em fala torta do povo)

Tudo buburinhou na manhã 

de nuvens parcas veraneiras

e aquele ventinho ventoso,

que envinha-vinha na copa baixa.

Tenho cisma de grotão

onde o capim navalheia.

Chupim e o passopreto

no entorno do brejinho mode gole,

assuntando água e cisma alerta,

dão conta de chuva chuventa

que évem vem-vem rala, molhadeira.

É dezembro e o mundo range

de alegrias ensaiadas, antigas.

Deferençou nada no ermo:

Musco ogrou sua beleza,

imbaúba viçou viçosa...

Tudo segue seu ritmo tatibitate.

Gorgojeios, zumbidos, estalos.

Tiziu cantou seu canto-pulo

para o buriti teimoso no rego.

Piripimpim d’água rala vazou

mundo adentro, vida veloz e sempre.

-É tarde tardejando! Hora da boia no rancho…

Colchete

Meu canto não é lira, é toco.

Canto o torto, o fosco, o limbo

o roto. Não tenho tenências valiosas.

Sei que vou passar como um borrão

em dia de vento errado.

Tenho fala de bicho-gente e animal.

Divurgo coisas inúteis

de serventia pouca:

Cor de cavalo, nome de pau,

piado de aves e palavrório.

...

Fazenda Pedra Bonita ensina,

mas tem porteiras como o diacho.

Curva, morrote, pau torto e cipó.

Aquele riozote que passa lentoso

leva-leva até o Brilhante que é pardo.

O Arlete é homem simprão

mas só na farda, no por dentro é bardoso.

Vive seu viver vivendo sempre, sempre…

Desdorme por volta das três e meia

enquanto o galo ainda sonha penoso.

Chimarreia e sai pro eito no desnoite.

Anta que amansou com manga

vem bandiar o terreiro,

cachorrada nem tusga.


Dia é dia já, e o sol vai no eito longe.

Visita que sou, assunto a prosa:

Onça, enchente, gente que morreu,

causo de chifre, facada e tiro que deram,

mode amor, desdita e dívida.

Tudo acontece na vila, que é antiga como pedra.

Não tem falta de nada, tudo serve.

Cachorro tem de turma, diverso na cor e feiura.

Fartura de muito compadre e colchete,

colchete como o diacho...

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Poetas

 O poeta é um amante do belo

da natureza, da nobreza

e ama tanto, tanto

que tanto, enterneceu-se...

Tomou para si um canto de pássaro 

e o reteve em seu quintal,

em uma linda gaiola, munida de grãos,

sementes e água limpa.

O pássaro feliz canta

seu canto de desterro...

Velhos...


 
Velhos estão sempre alforjados
de alguma valia e desvalia.
Sempre à mão uma sacola colorida
donde recolhe seus achados,
arruelas, parafusos, cordões
que sempre serão imprescindíveis.

O tempo curvou-lhes a cerviz 
e agora seus olhos gastos veem
o chão e seus tesouros.
É no chão, na terra que ele se reconhece,
seus destino, sua origem e seu fim.

Olhar para cima nada lhes acrescenta,
o éter é para os loucos e poetas
que veem na amplidão razão e significado...
idiotas!É no chão que está o fluido...
Anseiam pelo abraço telúrico,
pelo calor de Gaia, eviterna.

Mãe que apodrece as vilezas,
desditas, honras e sordidez.
Senhora das horas, dos príncipes,
de toda beleza e todo feiume.

Sheol de todas as palavras,
guardiã de poemas e crenças...
O velho vai ensejando vida,
desterrando nomes e histórias
que o piso calcado vai puindo...

Segue seu curso indeciso mas infindo
com os pés bem fincados em seu chão...

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Chuva

 Uma gota da chuva de im antes

translúcida, prestes a desabar

no abissal espaço entre a folha e o chão,

pulsa levemente, sabendo-se o último

vestígio chuvaroso da noite alumiada.

No em baixo, formigava a saúva laboriosa,

com suas trempes e alforje de ínfimas coisas, 

seguindo na highway d’ontes, célere.

O ventoso, contido em sua fúria noturna

de espalhar folhas e gravetos, aluía,

bafejavando seu hálito refrescoso e cálido.

Mínimas jataís, voa em torno assuntando.

Sim, jataí é bichinho cestroso, que espera,

sem alvoroçar como a caga-fogo.

Enfim segue seu destino desaboso e cai.

A saúva tomba com o impacto da gota,

que se espatifa num aluvião molhoso.

Caos! Milhares de gotículas explodem

aquosas, iluminadas pelas réstias.

Em cima, nuvens fogem, abrindo a janela

do azulamento festivo da infinitude,

no éter profundo, onde o pensamento

não alcança, lá, na negrura da escuridão

onde o fiat lux se deu,

onde ecoam explosões infindas de fogo e gelo,

onde cá embaixo o zoio d’homem carcula,

enrolando seu fumo de ilusão e medo.

Lá, nas bordas do infinito, um olho vê

o pensamento desfazer-se como a névoa,

na bolinha azulada, morada de formigas,

que seguem seu caminho de ajuntar sempre.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Mundos

 Sinto falta dos grilos,

da vermelhura negra de joaninhas.

Onde estão as borboletas?

Não avuam mais as mariposas?

O povinho miúdo esquivou-se

e as noites são limpas.

Só o chorume mole do metal,

aquele moto contínuo de engrenagens,

luzes onde devia alumiar a lua,

ou simples negrura...

Capiaus são almas binárias,

não sabem mais o canto da Gia

e pererecas são E.Ts assombrados.

Quando eu meninava no eito do mundo

na longínqua Rondônia,

onde o sete-pernas campeava suas botas,

eu sabia de cor o tau-tau do sapo martelo.

No de manhã, o tisiu assuntava toco

no seu canto-pulo, e azulava no mundo.

Esse mundo roto, mundo de aço,

mundo de gentes curvadas sobre o santo totem da luz que encandeia,

como a sucuri quando ensaia abraço.

Nesse mundo oco não cabem mais  vaga-lumes nem cigarras encantando paus.

Centopéias e Marias-fedidas secaram,

inté gambá virou assombro...

Quedê o bate-bate do grilinho marrom?

O louva-Deus é finado?

Tem base um trem desse?

Tem não sô, por mode que é tudo lógico,

tudo não faz conta nesse mundo outro.

quinta-feira, 11 de março de 2021

Possessão

Sou pessoa de gravetos e besouros,

coleciono folhas e sementes

e tenho uma orelha de pau amarela.

Um saci me deu um apito de pena,

diz que chama anta e desvia vento.

Tenho ideias para grilos marrons

e formigas de Embaúba mole.

A estradinha que entortou a tarde

é o meu caminho para a eternidade,

no lusco-fusco das manhãs eu medro

entre uma casca de pequizeiro

e a sucupira prenhe que solta bagos.

Minha alma é cascarosa e áspera,

tem estames, limbo e veios.

Um urutau me ensinou um toco,

enganar a morte é arte de esgueirar-se,

de folhar-se e escutar o quem-quem avuando.

Sou raso, e guardo burburinhos no bolso

mode dormir um regato na noitinha

quando évem gorgorejando a lua.

Tenho pressa não, ambições de sereno

e um calanguinho que escondi,

onde o sonho é sempre vívido,

onde deito meu cansaço, meu temor,

onde não tenho possessão nem desejo,

só o som de aluviões e um vento besta,

que desalinha folhas e pedrinhas inúteis.


domingo, 18 de outubro de 2020

O arlequim

 

O homezeco entrou no salão apressado,

trazia chocalhos, guizos e a escarlata,

trajava vestais de escândalo e pantomimas

e começou seus mambembes célere,

com esguichos, parolas débeis

e notória algazarra.

Ora zurrava como um asno,

ora mugia, ora paroleava.

A audiência a princípio desdenhou

e do esgar foram ao riso,

logo estavam às favas.

Ele sentia que a bazofia era boa,

 dava saltos, bailava e esganiçava,

a grita o aplaudia e gozava.

Apitos, apupos e tiros

aos inimigos que inventava.

Foi assim por longo tempo

mas suas calças rotundas,

deixavam mostrar a genitália.

A certo tempo a turba empacou

pois viu-se detrás das cortinas,

as cordas que lhe alçavam...

Era um títere! Alguém o controlava.

Houve protestos, muita grita muitos gestos,

muita desdita e todos logo debandavam.

seu mestre vetusto se esquivava.

Mas derrubou-se o teatro

e o horror já se mostrava.

Todo de negro, besunto

seu corpo espinhoso limbava.

A cara horrenda, olhos saltados,

dentes de cão que grunhia,

nomes horrendos gritava.

Tudo se revelou,

tudo agora clareava.

Mas seu boneco insuflou!

Já tinha vontade, discursava.

Agora empunhava bandeiras

e ferros que balançava.

Seus partidários que dopara,

viam-no como antes,

um que tinha parolas,

que esperançava.

Arrebanhou para si aquelas pobres almas

e partiu ao ostracismo que a história lhe legara.

Mas outros vendo-lhe a bufa,

puseram de molho a barba,

aprenderam-lhe as astúcias

e cozeram-se para si fardas,

vestiram-se de devotos discípulos

e deram-se com vigor à charla.

 


terça-feira, 18 de agosto de 2020

Agosto e as chuvas

É um rufião

e se inaugura soproso,

com açoites se esfarfalha todo,

mode o povim-povim saber sua fúria,

seu reinado de tufões e poeira.

A secura vai ancha nas campinas,

estrepitando e deitando o erval.

o capim nédio vai derriçando

obediente ao seus caprichos.

Sua têmpera  de mulher rixosa,

não descansa no negrume da noite.

Ameaça com chuvaral, mas é embusteiro,

quer ver  o crepitar, o desterro.

Há quem se lambuze em seus arroubos

e até faça gosto em suas mungangas.

Sou destes que apreceia o desgosto,

a loucura de cães e os arabescos

que ele desalinha na anchura do mundo.

Agosto é pra quem tem partes co'um!

(nome de nem se desdizer que é ruim)

Com gravetos e besouros,

com a lagartixa quando espia

solerte, mas como quem morre.

Destarte vou criando raízes

e esporões do azedume de agosto.

-Êta que évem chuva sô!

-Né pouca não, ta percisano!


quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Aguaceiro

A beleza de agosto está na bagaceira,
no crepitar do capinzal tórrido.
Na anchura de um valado seco,
no prim-prim-prim de um rego lerdoso.
...
Uma fumacinha subiu na lonjura.
É queima que inaugurou  cana!
Um estalido anunciou água dentro,
mas o fogo lambeu sereno, sem pressa.
Redemoinho mentiu chuva breve:
-Tem capiroto que dança nele!
Coisa de se pegar em peneira e engarrafar.
-Qual! É astúcia do vento barulhoso!
-Se ocê num querdita num desdenha sô;
que é bicho assombroso de outro mundo!
Lenda de caboclo besta, sismoso sempre.
...
Sei de um segredo que ninguém conhece:
Um pedrusco avermelhado que escondi no morrote.
Sua pele sempre lisa, sua solidão me põe inveja.
Sou pessoa de gravetos, de cascas e estames partidos,
tenho apreço por grilos marrons e besouros cegos.
Uma nuvenzinha se aprumou no horizonte,
mas nem chuva nem vento, só secura.
A capoeira vai se organizando mode a noite,
que évem solerte, trazendo um bafo úmido,
um restolho de esperança, um alento ao seco.
Entre mugidos e grunhidos nos baixios,
um caga-cebo assoviou auspicioso
e o coleirinha banhou-se na areia mornenta.
Tanto festejo, tanta farrura nas copas,
agosto anuncia seu cansaço, 
breve évem aguaceiro!

domingo, 25 de junho de 2017

Grotões

Não há poesia na vida
nem na morte que olha
pela porta entreaberta.
Não há poesia na libélula louca,
nem no menino que corre.
Não há poesia naquele mourão,
nem no bem-te-vi inconstante
que mercadeja a Embaúba doce.
Ela é um pangaré hesitante,
sempre mambembe, moura,
de ideias oscas como a vaca.
Carrega nua pela estradinha,
suas trempes etéreas, devaneios,
desvarios inúteis sobre paus,
penas e a serralha de flor branca.
Quem se ocupa com suas lérias
perde tempo e nada ajunta.
É ópio e fumega constante
sempre adernando, sempre tosca.
Versa ora sobre um rio ancho,
ou aquele rego d'água tiubeante,
que tirilinta um buriburi infinito.
Não constrói nenhuma valia,
mas sabe de coisas do cerrado,
do fogo que correu bicho,
da florzinha que despega voando
pelo desalinho que o vento teceu,
nas pequenas touceiras de capim,
na tarde oscilante. Somenos!
Como quando a formiga assunta o rumo,
ou quando um João-de-barro dá seu pulo-passo.
Nome de paus, de gentes, de bardas,
histórias que coisam a noite quando coisa.
Na poesia a realidade se alonga na brenha
e da lugar a nadas, a eitos vazios, a grotões.
A poesia é uma loca de antanhos.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

As vendedoras

Na avenida Calógeras,
moças ocas esperam
na porta inconsciente,
soslaio no séquito.
Esperam o freguês, o paciente,
o impeachment, o golpe transeunte.
Passam velhos, moços cansados,
passam meninos, meninas casadas.
Todos passaram...
Passou o dia, passaram os anos,
a moda passou, elas ficaram.
As moças ocas botaram brotos,
seus olhos extenuados secaram.
Mas o tempo ali não passou,
foi ficanducando, criando arestas,
deixando marcas empoeiradas,
marcas de desesperança, esperando.
O verdugo das horas marcou incessante
no descompasso de um tempo antigo,
sempre o mesmo modo, redundante.
As moças aquiesceram, sempre ocas,
repetindo o mesmo mantra
num muxoxo inaudível:
O preço, o desconto, o clima, a novela...
Bancas repletas de desejos rotos,
que o sol marcou graciosamente,
em tons de amarelo ouro, desbotando.
A conversa ensaiada, reza o mesmo:
O desgoverno, o furto, a propina...
Essas moças que regem esse mundo oco,
estão lá para fazer esquecer o desgosto,
sabendo que cada passante vai oco,
buscando o motivo de dar o próximo passo-passo,
pisadas ocas ecoam nas moças ocas
em seu mundo oco.
-Chegar freguês! É promoção!

Fastio

Viver sempre na superfície,
nos valados, no rasteiro, no grotão.
O raso é sempre seguro, não intima,
onde o mormaço oscila uma poça
e uma poeirinha besta açoita.
Sou do raso, da superfície,
rejeito profundidades e inquérito.
Quero sempre o inútil do cerrado,
a fome do lobinho, o mormaço,
o sol que finda amarelando o dia
para a noite já se inaugurando.
As demandas dos homens cansam,
sempre a mesma ladainha, o mesmo choro,
a mesma reza inútil, a mesma fome.
Tudo é solene, tudo é sagrado:
A morte, o nascimento, os laços,
a dor, a alegria, tudo é pesado...
Clérigos roçam baixo, o pasto
com sua nobreza régia, sua voz calma,
seus arreios levam seixos santos,
ossos, panos,lágrimas, lâminas etéreas.
Mas o grotão tem seu próprio lume,
sua prece sinuosa, sua volúpia,
seu burburinho aquoso, seu nume.
O carcará pinçou um pintainho
e subiu seu voo legítimo.
Uma rabeca lambeu um ingazeiro,
seco, seu dorso branqueia a casca.
O inverno no cerrado é amarelo
no capim que cresta derriçoso.
Querelas estão nas copas por pouso,
não há necessidade de ordem.
Ao fim do sol, a noite negrurou
e as manhas virão eternamente.
-Percisa não seu moço!
O que évem sempre já estava!

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Pé de serra

Naquele mundico antigo,
lá, naquele lugarojo empedernido,
onde o céu descansa na serra,
um par de asas desenhado em cartilha,
passarou uma nuvem encostada.
Piooú! Piooú! Agourou penoso em assomo.
Flap! Flap! Desenhou no ar um risco
e sujou rumo do sol pastoso.
Na estradela espichada na brenha,
pedruscos encarnados, silenciosamente
querelam um mormaço ondoso,
que sobe fumacento no meio do dia.
-Digue! Digue tu que desdigo!
-Digo não que estou com pressa!
Anum tergiversa com o branco.
(Anum branco falseia a cor)
Fogo-pagou disconcorda:
Errou! Errou!
É sempre agosto nesse lugar
guardado em gavetas de minha avó.
Estão dentro, um cheiro amarelado
de livros que se esqueceram.
Lá, os homens são pra ser lidos,
histórias de assombros medonhos.
-Mode que lobisomem é lendoso!
Desafia o Raimundo em valentia.
-Mas o homem é besta-fera!
(Ensina a didática da corrutela).
Um birim, birim de corguinho intermitente
é a música constante no quintal,
onde as manhãs são tardias
e as tardes matinais.
É a ordem, onde todo desacordo cessa,
onde o tempo desencoraja o relojoeiro.
Onde deixei minhas memórias
guardadas em gavetas abissais,
que se abrem com chaves etéreas.
Lugar inventado no im antes Mato Grosso,
no marracabelo, ao pé da serra.

domingo, 21 de maio de 2017

Cerrado

O cerrado me entardeceu cedo;
Um cheiro ocre, tão áspero, embriagou.
Telúricas almiscaradas se misturam,
tecendo-me teias imemoriais.
Sendas amarelecidas permeiam-me,
rastros, uréia, pedruscos medram dentro.
O outono finalmente desfolhou-se
e enterneceu um pequizeiro.
A escassez do cerrado ensina;
Aprendo-lhe a economia,
o alheamento, o caos ordeiro.
-Lobinho diz que tem, mas raleia!
Tamanduá assunta formiga no vento,
quero-quero mente o ninho gritando.
Agora tem um tom chumboso nas folhas,
breve agosto virá derriçar o capim.
No cerrado o medo erra caminho:
-Assombração num tem gosto na luz!
E quando a noite évem, devagarinho,
a grilaiada organiza o baile inté tarde!
Trovejou na borda da mata dentro:
-Bugio deu notícia de chuva:
Com três dias aguaceiro é certo!
-Há no cerrado toda sorte de vivente!
Uns veve em cima, outros no embaixo!
Essa lonjura sempre no horizonte,
aumenta a vista da imaginação.
O cerrado encerra tudo no homem,
Inté o palavrório vareia!

segunda-feira, 20 de março de 2017

O lucro

O lucro é bruto
é liquido, é de poucos.
O lucro é raso,
é tísico, é louco.
O lucro é volúvel
é volátil, é voluptuoso.
O lucro entontece
inebria, ensandece.
O lucro esquece,
o lucro vence, empobrece.
O lucro caça,
espreita, entenebrece.
O lucro janta, jacta,
almoça o próprio dorso.
O lucro é osso,
é carne, é sangue,
O lucro é um fosso.
O lucro seca,
exaure, extirpa, enrijece.
O lucro sega,
o lucro suga,
O lucro é doce.
O lucro é ogro,
é cego, é mudo, é mouco.
O lucro é um aleijão,
Quasímodo insone,
o lucro é uma paixão.
O lucro é um vício,
é um dote, é vão.
O lucro é um dom,
é torpe, rufião.
O lucro não é de todos,
é de tudo, é ladrão.
O lucro é um menino no escuro
esperando a ocasião.